Entre os crentes e os céticos - pequena carta de aniversário
Aos 27 anos, a fé nos planos próprio sucumbe perante o acaso, que torna vida doce e imprevisível
"O verdadeiro, único e mais profundo tema da história do mundo e dos homens, ao qual todos os outros estão subordinados, continua sendo o conflito entre a descrença e a crença."
(Goethe, Noten und Abhandlungen zum besseren Verständnis der West-östlichen Divans, Israel in der Wüste, 256)
"Das eigentliche, einzige und tiefste Thema der Welt- und Menschengeschichte, dem alle übrigen untergeordnet sind, bleibt der Konflikt des Unglaubens und Glaubens."
Desde 2022 mantenho o hábito de escrever uma pequena reflexão a cada aniversário. É a forma que encontrei de documentar a jornada e ver o que mudou de um ano para outro. Recordo-me de, em 2024, havê-la escrito depois de assistir ao filme Trinta anos esta noite, cujo enredo descreve a jornada de alcoólatra em busca de uma motivação na sua vida. O final do filme (permitam que o adiante, pois já faz 60 anos do seu lançamento) é o suicídio, pelo qual os problemas do mundo estariam enfim liquidados.
Otto Weininger, em Sexo e Caráter, tratando do gênio, comenta que a sua vida é dividida em períodos férteis e estéreis. Nestes, cresce o desejo de tirar a própria vida e as outras pessoas parecem incapazes de perceber o que se passa. Pelas suas ações, contribuem para agravar uma situação que já se pode chamar de trágica. A reação de muitos perante a depressão, sejam os que a negam sejam os que a reduzem ao mundo físico-químico, empurra o doente em direção ao abismo.
"Pois é justamente a forte periodicidade do gênio que faz com que ele sempre tenha anos estéreis seguidos por anos frutíferos, e que após períodos de grande produtividade venham novamente fases de extrema esterilidade – tempos em que ele não tem nenhuma consideração por si mesmo, chegando até a se menosprezar psicologicamente (não logicamente) mais do que a qualquer outra pessoa: afinal, atormenta-o a lembrança do período criativo, e, acima de tudo – como ele vê os outros, não perturbados por tais recordações, circularem livremente! Se seus êxtases são mais intensos que os dos outros, suas depressões também são mais terríveis. Em todo homem extraordinário há esses períodos, mais curtos ou mais longos; tempos em que ele desespera completamente de si mesmo, em que pode até ter pensamentos suicidas, tempos em que, embora muitas coisas possam chamar sua atenção, e sobretudo muitas coisas se preparem para uma colheita futura, nada surge com o vigoroso ímpeto do período produtivo, ou, em outras palavras, a tempestade não se manifesta; tempos em que se diz daqueles que, apesar disso, insistem em produzir: 'Como ele decaiu!' 'Como ele se esgotou completamente!' 'Como ele agora só se copia!' etc., etc."
(Otto Weininger, Sexo e Caráter, Capítulo V: Vocação e memória)
A citação esse autor não é gratuita. Weininger estabelece, em sua obra, uma tipologia do espírito masculino que aspira à genialidade contra o feminino (ao qual são fechadas as portas da vida do espírito) e o judeu (cujas preocupações se reduzem à bajulação e à busca do bens materiais). Ironia do destino, o autor dessa classificação era homossexual e judeu, o que o levou à ação mais consequente que poderia tomar: tirar a própria vida aos 23 anos. Não renunciou ao seu compromisso com a coerência.
Parece que certas vidas nasceram talhadas para o trágico e não descansam enquanto não o realizarem. Posto que ricas, belas e inteligentes que sejam, sentem que não merecem aquilo que têm. Põem-se a destruir não só os objetos, mas o amor que os parentes e amigos tenham por eles. O seu sossego só se encontra na morte, na bala que atravessa o crânio e deixa vazar a massa encefálica ou no tiro que interrompe a harmonia do coração. A única música que acalma é o silêncio.
Por outro lado, há os que vivem o trágico, mas ainda conservam com o palma da mão a chama da esperança contra os ventos da tristeza. Apesar do lamento, ainda existe nestes o otimismo Leibniziano, do Deus que gerou o melhor mundo possível, no qual nada sucede sem a autorização dele. O seu coração grita como no poema de Schiller: nascemos para algo melhor! Clamam pela resposta porque é o que lhes resta. Creem para compreender, porque não terão paz enquanto não entenderem.
O grande problema é que a vida não se interrompe nesse conflito entre a fé e a descrença. É preciso pagar contas, trabalhar, ter presente que os outros apenas em raros momentos querem saber o que acontece conosco. Somos para eles coadjuvantes dos seus dramas, que talvez sejam piores que os nossos. Ou, o que acontece com mais frequência, sejam tesouros que dormem séculos sem que escavações os perturbem. São melhores que eu e você? Pelo menos, a vida lhes poupou desse sofrimento.
Ela não os livrou das desventuras da carne, que não são menos penosas que as da alma. A venalidade pode varrer a morada o quanto quiser, o olhar mais atento verá a réstia de poeira da contemplação que só espera o inverno da vida sensível para se manifestar. Céfalos, no primeiro livro d’A República, afirma que a velhice aviva o prazer pelo diálogo e a busca da Filosofia. Para muitos significa o retorno à fé e a meditação sobre a própria biografia.
Fica a sabê-lo bem: na medida em que vão murchando para mim os prazeres físicos, nessa mesma aumentam o desejo e o prazer da conversa.
(República, 328d, Editora Calouste Gulbenkian)
A luta para não perder a esperança permanece até o último dia. A coragem dos crentes não reside na ostentação da sua fé nas redes sociais ou no moralismo das condenações. A verdadeira coragem mora no coração de quem, decidido a ser fiel a si mesmo, tem a coragem de lutar contra as convenções de um mundo que glorifica a busca cega pelo dinheiro e o amor às aparências. É a ordenação que traz harmonia à cidade e à alma. Num mundo onde o amor está direcionado ao mal, só podem nascer a discórdia e a angústia.
Essas palavras, por óbvio, não nos liberam dos males presentes. Antes os atiçam a vir contra nós mais fortes. As palavras de Jó se fazem presentes: Não é, acaso, uma luta a vida do homem sobre a terra? Seus dias não são como os de um mercenário? Como um escravo que suspira pela sombra, e um assalariado que aguarda o pagamento, assim também tive por sorte meses de sofrimento e noites de dor me couberam por partilha. É a lembrança de que as utopias não podem nos salvar de nós mesmos.
A renúncia à luta, entretanto, jamais será uma opção. A pergunta correta é: por que lutar? O mundo da contemplação se apresenta: não para anular o combate, senão para torná-lo verdadeiramente frutífero. Tenho comigo as palavras de Plotino: Ne cesse pas de sculpter ta propre statue jusqu'à ce que l'éclat divin de la vertu se manifeste. (Ennéades, I, 6, 9). Esse retorno à unidade converge com o suicídio quando enxerga no silêncio como elemento positivo. A sua grande diferença é que o conselho plotiniano sabe que silenciar é permitir que a ordem do Uno se manifeste perante nós.
A compreensão dessa ordem e nossa adequação a ela representam a superação dos impulsos negativos da nossa personalidade. O grande mérito do gênio, escreve Weininger, é direcionar o que há de negativo nele para a obra de arte ou de pensamento. O que seria mal supremo se transforma em bem pela ação de uma força superior. É o que separa o homem comum daquele ouviu o chamado sem ter medo de dizer sim. As suas palavras são: faça-se em mim segundo a tua vontade.
"Dessa forma, o impulso criminoso no grande homem é espiritualizado, transformado em motivo artístico como em Zola, ou em concepção filosófica do 'Mal Radical' como em Kant, e por isso não o leva ao ato criminoso."
(Otto Weininger, Sexo e Caráter, Capítulo V: Vocação e memória)
Neste ciclo que se inicia, desejo apenas ser capaz de responder a essa pergunta. Sou um idealista ansiando pelo dia em que, ao acordar, nunca mais terei dúvida sobre minha vocação. Se ele nunca chegar, ficarão ao menos as palavras deste diário, sinal para outras almas que atravessam as mesmas angústias.